
Considerado pelo Colégio de Cardeais um dos grandes desafios da Igreja Católica, os escândalos de abuso sexual cometidos por religiosos já pairam sobre Leão XIV. Duas organizações não governamentais (ONGs) de defesa das vítimas acusam o recém-eleito papa de omissão em casos ocorridos no Peru, onde Robert Francis Prevost foi vice-presidente da Conferência Episcopal. As alegações foram feitas no mesmo dia em que começaram a circular trechos de antigas mensagens do então bispo condenando as uniões homoafetivas.
A ONG norte-americana Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual por Sacerdotes (Snap) divulgou uma carta de 20 páginas endereçada em 25 de março ao cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, na qual detalha casos de vítimas que ficaram sem resposta da diocese de Prevost, em Chiclayo. O documento diz que, em 5 de abril de 2022, três mulheres procuraram o então bispo para denunciar o padre Eleuterio Vásquez González, que teria abusado delas no início de 2007, quando eram menores.
Uma das vítimas, Ana María Quispe Díaz, contou que tinha 9 anos na época do abuso. Ela alegou que sabia da existência de outras sete pessoas também molestadas por padres de Chiclayo. Segundo a Snap, Prevost não se manifestou sobre as denúncias. Porém, a diocese negou, em nota, que os religiosos foram blindados pelo então bispo. Ele teria afastado o padre, proibindo González de exercer o sacerdócio e, em seguida, enviado o resultado da investigação ao Dicastério para a Doutrina da Fé, no Vaticano.
Segredo
A Bishop ability, que mantém uma biblioteca pública de documentos sobre abusos cometidos por membros do clero, também acusa o papa Leão XIV de omissão. Em nota, a ONG destacou que, em janeiro de 2023, quando o então bispo, prestes a se tornar cardeal, substituiu o canadense Marc Ouellet no Dicastério para os Bispos, casos denunciados foram encobertos. "Ele manteve o segredo dos processos e, sob sua supervisão, nenhum bispo cúmplice foi despojado de seu título", disse Anne Barrett Doyle, codiretora da Bishop ability. A organização também afirma que, em 2000, quando era chefe dos agostinianos em Chicago, sua cidade natal, Pervost permitiu que um sacerdote acusado de pedofilia vivesse em um convento próximo a uma escola.
O jornalista investigativo peruano Pedro Salinas garante que as alegações não procedem. "São absolutamente falsas. Prevost sempre se colocou no lugar das vítimas", disse, ao site Religion Digital. Para ele, a suposta omissão do papa nos casos de abusos sexuais teria sido armada por ex-integrantes do Sodalicio de Vida Cristã. Essa congregação ultraconservadora de leigos e sacerdotes de origem peruana foi investigada sob o bispado do agora papa durante sete anos. Quatro de seus líderes cometeram crimes contra 19 menores e 10 adultos entre 1975 e 2002. Ao receber o resultado do levantamento, o papa Francisco determinou a dissolução da Sodalicio.
Salinas acompanhou, como repórter, as investigações sobre a congregação, além de pesquisar sobre outros crimes sexuais cometidos por religiosos no Peru. "Robert Prevost sempre tomou partido e defendeu as vítimas. Ele sempre colocou as vítimas em primeiro lugar e foi um dos que defenderam sobreviventes e vítimas contra os ataques do Sodalício", afirmou. O jornalista acusa "setores de extrema-direita" da Igreja Católica de tentar desacreditar o papa.
Polêmica
Outra polêmica levantada horas após a eleição de Leão XIV foram declarações de 2012 do então bispo Robert Prevost em um sínodo, condenando que chamou de "estilo de vida homossexual". Discursando aos colegas, o agora papa disse que a mídia de massa ocidental é extraordinariamente eficaz em promover no público uma enorme simpatia por crenças e práticas que estão em desacordo com o Evangelho — por exemplo, aborto, estilo de vida homossexual, eutanásia".
Prevost também culpou a mídia por promover "simpatia por escolhas de estilos de vida anticristãos". "Pastores católicos que pregam contra a legalização do aborto ou a redefinição do casamento são retratados como ideologicamente motivados, severos e indiferentes", criticou. Além disso, o então bispo reclamou que "famílias alternativas compostas por parceiros do mesmo sexo e seus filhos adotivos são retratadas de forma tão benigna e simpática nos programas de televisão e cinema hoje em dia".
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LGBTQIAPN
Outra polêmica levantada horas após a eleição de Leão XIV foram declarações de 2012 do então bispo Robert Prevost em um sínodo, condenando o que chamou de "estilo de vida homossexual". Discursando aos colegas, o agora papa disse que a mídia de massa ocidental é extraordinariamente eficaz em promover no público uma enorme simpatia por crenças e práticas que estão em desacordo com o Evangelho — por exemplo, aborto, estilo de vida homossexual, eutanásia".
"Pastores católicos que pregam contra a legalização do aborto ou a redefinição do casamento são retratados como ideologicamente motivados, severos e indiferentes", criticou Prevost. Além disso, o então bispo reclamou que "famílias alternativas compostas por parceiros do mesmo sexo e seus filhos adotivos são retratadas de forma tão benigna e simpática nos programas de televisão e cinema hoje em dia".
Doutor em ciência da religião e professor do curso de teologia da Universidade Católica de Brasília (UCB), Vicente Paulo Alves acredita que os questionamentos sobre a atuação de Robert Prevost em casos de abusos sexuais e as falas sobre casais homoafetivos têm sido amplificados por grupos com agendas distintas. "Setores conservadores que usaram a tática de disseminação de fake news durante o conclave para minar candidatos considerados progressistas e segmentos evangélicos incomodados com a visibilidade midiática da eleição papal", enumera.
"As acusações, até agora, não se sustentam em documentos oficiais nem resultaram em investigações formais. Muitos dos conteúdos circulados são recortes fora de contexto ou tentativas de reinterpretação enviesada de sua trajetória", acredita Alves. "Estamos no início do pontificado de Leão XIV. Julgá-lo com base em rumores ou narrativas descontextualizadas seria precipitado e injusto."
Para o professor da UCB, o primeiro discurso de Leão XIV como papa sinaliza o acolhimento da comunidade LGBTQIAPN . "Ao afirmar em seu primeiro discurso que 'a Igreja é para todos', Leão XIV sinaliza a continuidade de uma Igreja que acolhe os chamados 'periféricos': pessoas LGBTQIAPN , divorciados, migrantes, pobres, povos originários, jovens afastados, entre outros."
Eu acho
Quando o papa Leão XIV afirmou que a Igreja é para todos, não me pareceu apenas um gesto simbólico ou protocolar. Foi uma fala carregada de significado, que indica um compromisso que vai além de opiniões ou daquelas que ele tinha quando era bispo. Parece haver ali certa continuidade com o espírito do pontificado de Francisco — uma Igreja disposta ao diálogo, ao encontro e à escuta, próxima daqueles que sofrem e que, historicamente, foram deixados à margem, como os homossexuais. Mas é importante lembrar que o próprio ensinamento da Igreja Católica distingue o acolhimento da pessoa homossexual da aprovação de determinadas práticas. O papa possivelmente manterá essa linha: incluir sem relativizar. Leão XIV é doutor em Direito Canônico, o que revela não só profundo conhecimento, mas também um olhar naturalmente mais atento e rigoroso em relação às normas da Igreja. Ao citar Leão XIII e Santo Agostinho, reforça seu vínculo com a Tradição, e sua experiência na Congregação para os Bispos mostra que conhece bem a estrutura da Igreja e se alinha ao magistério. Por tudo isso, acredito que sua postura será moderada, propondo uma Igreja que acolhe, mas sem abrir mão das bases dogmáticas do catolicismo.
Manuele Porto Cruz é teóloga, psicóloga e mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, leciona no curso de Filosofia da Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília (Fateo)