A cada 15 minutos, uma pessoa morre em ocorrência de trânsito no Brasil. Os dados mais recentes do Altas da Violência 2025 revelam que o país perdeu 34.881 vítimas. Não bastasse o crescente número de vidas perdidas, há uma tragédia pouco falada e desconsiderada pelas autoridades: os sobreviventes que am a viver com sequelas permanentes.
No Distrito Federal, entre 2020 e 2024, 1.279 pessoas perderam a vida em acidentes, segundo o Departamento de Trânsito (Detran-DF). Somente no ano ado, foram 229 óbitos. Um dos mais recentes ocorreu na Fercal. Um caminhão-tanque tombou, pegou fogo, atingiu um carro e duas motos. Uma pessoa morreu na hora. Outras três ficaram hospitalizadas. Leia o artigo da professora doutora Zuleide O. Feitosa.
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Moradores e motoristas que trafegam pela Fercal denunciam a insegurança na rodovia. O motorista Eliton Caires aponta a falta de quebra-molas e sinalização precária. "É muito perigoso. Não tem nada: nem quebra-mola nem radar, nem sinalização suficiente. Só se atentam quando alguém morre", relata.
Levantamento da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) mostra que, a cada dois minutos, uma vítima de trânsito dá entrada em um pronto-socorro do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Só no Hospital de Base, entre outubro de 2024 e maio de 2025, foram 1.599 atendimentos, de acordo com a Secretaria de Saúde (SES).
Quanto àqueles que aram a viver com sequelas no DF, o único dado obtido pelo Correio é o da Caixa Econômica Federal, que istra o seguro DPVAT (Dano Pessoal por Veículo Automotor de Terra. No período de 2021 a 2024, 5.034 pessoas solicitaram a indenização por invalidez permanente por meio do seguro.
O Estudo dos Custos de Acidentes de Trânsito no Brasil, feito pelo Instituto de Segurança no Trânsito (IST), revela que, por ano, no Brasil, pelo menos 250 mil pessoas am a viver com sequelas irreversíveis. Uma realidade que Josiel Ribeiro Fernandes, 38 anos, está trilhando desde 6 de janeiro de 2024.
Após ar o ano-novo com a mãe, em São João d'Aliança (GO), pegou o carro à noite, atravessou Palmas (TO) e seguiu dirigindo madrugada adentro. O corpo não resistiu ao cansaço. Josiel cochilou, perdeu o controle do carro e acordou do coma dias depois, em um hospital, tetraplégico. "Foi o pior momento da minha vida. Tentei me mexer e não conseguia", lembra, com a voz firme e lágrimas contidas.
Josiel ou mais de quatro meses internado em Palmas. No Hospital Sarah de Brasília, ele encontrou o que chama de renascimento. "Sempre achamos que não vai acontecer conosco, mas acontece. Só entende isso quem já perdeu tudo", lamenta.
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O mesmo estudo que aponta o número de vítimas com sequelas destaca que as ocorrências de trânsito custam ao Brasil cerca de R$ 300 bilhões por ano. São gastos com hospitais, insumos, perda de produção, custos de adaptação em casa, o humano (doenças mentais). Só com a previdência, são gastos R$ 4 bilhões por ano.
Presidente do Instituto de Segurança no Trânsito, e autor do estudo, David Duarte classifica a inércia dos governos federal, estaduais e municipais como catastrófica. "Todas as técnicas de redução de acidentes de trânsito são conhecidas. O nosso problema é que somos ótimos no discurso, mas na hora de colocar em prática, todos os tomadores de decisão são negligentes", afirma.
Duarte critica a escolha de o Brasil de bater na tecla da fiscalização como pilar para a redução das tragédias nas vias. "A razão é muito simples: ela traz recursos para os Detrans e para o estado. A educação para o trânsito não dá lucro, gasta recurso. Construir um ambiente seguro é despesa para o estado", lamenta.
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Carlos Marcelo Ramos também a por tratamento na Rede Sarah. Ele não lembra do sinistro que mudou completamente sua vida. Sofeu um trágico acidente ao entrar na rua de casa em sua moto e só voltou a si quase 17 horas depois. "Só soube depois que tinha fraturado a coluna", conta. Antes disso, levava uma vida intensa como autônomo, tocando uma empresa de reformas e pintura.
A rotina no Hospital Sarah tem sido, para ele, um divisor de águas. "Fiquei mais de dois anos dependendo dos outros até para tomar banho. Aqui, estou aprendendo a sair da cama sozinho, ir para a cadeira, fazer o cateterismo na uretra com autonomia, coisas que fazem a gente voltar a ser alguém." Apesar das dores e das limitações, Carlos sorri ao falar da equipe que o acolheu. "Eles têm uma paciência difícil de encontrar em outro lugar. Não tem preço."
Com 16 anos de atuação na Rede Sarah, o clínico geral e diretor-executivo da Rede Sarah, Guilherme Dantas conta que, 50% das issões da Rede Sarah são motivadas por causas externas e, dentro desse grupo, os acidentes de trânsito respondem por metade dos casos. O atendimento aos pacientes é integral. "Eles precisam de uma abordagem interdisciplinar — médicos, terapeutas, psicólogos, assistentes sociais — e isso nem sempre está disponível na rede pública com a qualidade necessária", pontua.
Na visão de Dantas, a prevenção é um caminho urgente e eficaz para reduzir o sofrimento e os custos associados aos acidentes de trânsito. "Precisamos investir em infraestrutura, educação no trânsito, fiscalização e transporte coletivo digno. Trabalhar nas sequelas tem um custo humano e financeiro altíssimo. O ideal seria evitar que elas acontecessem", defende.
O especialista em Segurança Viária Eduardo Biavati não tem dúvidas de que o trânsito brasileiro carrega uma clara, mas ignorada por muitos. "A violência no trânsito tem rosto: é jovem, homem, entre 15 e 25 anos. Esse é o grupo mais vitimado. E isso se repete no DF, no Brasil e no mundo", afirma. Para ele, esse dado deveria ser suficiente para gerar políticas públicas de prevenção por meio da educação. "Ensinar que cuidar de si é também cuidar do outro. É disso que precisamos. Porque quando alguém se machuca no trânsito, não é só ele que se fere. Somos todos nós. É a sociedade inteira que sangra".
Fernando Moraes sabe, como poucos, o peso que um acidente de trânsito pode ter na vida de uma pessoa. Enfermeiro com 17 anos de atuação na Rede Sarah, ele coordena o programa de neurorreabilitação em lesão medular na unidade de Brasília. "Quase 50% dos nossos pacientes com lesão medular sofreram acidentes de trânsito. O programa conduzido por ele dura, em média, de três a quatro semanas por etapa, mas esse tempo pode se estender, a depender de fatores como a gravidade da lesão, da condição física anterior do paciente, etc. "É comum que esses pacientes cheguem com estresse pós-traumático. Alguns podem levar anos para entender o que aconteceu. O emocional é parte fundamental da recuperação", enfatiza.
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Carlos Eduardo de Souza tinha apenas 24 anos quando se envolveu em um acidente. Para desviar de um veículo que fez ultraem proibida, o amigo saiu da pista. Sem cinto, os dois foram ejetados do veículo. Ele teve uma lesão medular que afetou sua mobilidade. "De repente, perdi os movimentos dos membros inferiores. O mais difícil foi o luto de ter perdido isso tudo de uma hora para outra", conta. Depois de seis meses em casa, isolado e enfrentando os custos altos do tratamento — que já ultraam R$ 40 mil —, ele conseguiu uma vaga no Sarah. Com a ajuda de órteses e andador, dá os primeiros os. "Aqui eu reaprendi a viver. É difícil, mas não dá pra desistir."
Para Carlos, além da perda física, há a social. "As pessoas sabem que você sobreviveu, mas não entendem o que vem depois. Acham que está tudo bem. Ninguém vê as sequelas", desabafa. Carlos deixa um recado para quem enfrenta a dor da recuperação: "É um processo doloroso, mas a gente precisa ter fé. Manter o foco, entender que tem um propósito nisso tudo. Se um dia eu voltar a correr, a primeira coisa que quero fazer é jogar bola de novo. Mas só de poder cuidar de mim mesmo já vai ser uma vitória."