
Em 2013, quando o mundo assistia à eleição de um novo papa, poucos imaginavam que aquele homem, que pedia a bênção dos fiéis antes de conceder a sua, mudaria para sempre a Igreja Católica. Mas Francisco não é apenas um pontífice. É um divisor de águas, um líder que desafiou o poder, a tradição e as muralhas que separavam a igreja do mundo real.
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O gesto que realmente definiu o seu pontificado não foi a eleição, mas a Quinta-feira Santa daquele mesmo ano. Francisco lavou os pés de jovens detentos, incluindo uma mulher muçulmana, em um reformatório de Roma. O ato chocou os setores mais conservadores da igreja, mas antecipou o que estava por vir: um papa que não se veria acima de ninguém, que falaria dos pobres não como uma questão teológica, mas como uma urgência humanitária, e que faria da misericórdia a espinha dorsal de seu governo.
Francisco não se intimidou diante dos desafios. Enfrentou resistências internas ao propor reformas estruturais no Vaticano, atacou sem medo a hipocrisia da própria igreja e abriu diálogos que pareciam impossíveis. Denunciou a idolatria do dinheiro, defendeu os imigrantes como ninguém antes dele e fez da ecologia um tema central da sua missão. A encíclica Laudato Si' não é apenas um documento religioso, mas um manifesto planetário sobre o destino da humanidade.
A cada viagem apostólica, a cada discurso em que trocava a rigidez doutrinária pela ternura das palavras simples, Francisco ampliava sua revolução silenciosa. Ensinou que a fé deve andar de mãos dadas com a compaixão, que a igreja não pode se trancar em dogmas quando o mundo pede pontes, e que o cristianismo verdadeiro não se encontra no esplendor das catedrais, mas no rosto dos famintos, dos sem-teto, dos refugiados.
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Agora, aos 88 anos e com a saúde muito — talvez definitivamente — fragilizada, o Vaticano começa a preparar-se para um futuro sem ele. Na ausência do papa Francisco, a igreja poderá tomar dois caminhos: aprofundar as mudanças que ele iniciou ou recuar para o conforto de uma tradição imóvel. E é no conclave que essa decisão será tomada.
Como é costume em vésperas de conclave, nomes começam a surgir. Luis Antonio Tagle, das Filipinas, traz a continuidade da empatia e do carisma de Francisco. Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, representa a diplomacia e a estabilidade. Fridolin Ambongo, da República Democrática do Congo, carrega a força de um papa do Sul Global. Matteo Zuppi, da Itália, tem a sensibilidade pastoral de quem se preocupa mais com as ruas do que com os palácios. José Tolentino de Mendonça, o cardeal português que celebrou a última missa do Ângelus, já se destaca como um pensador da espiritualidade contemporânea.
A questão não é apenas quem será o próximo papa, mas que tipo de papa a igreja escolherá. Um sucessor que dará continuidade ao caminho de Francisco ou um pontífice que, pressionado por setores conservadores, tentará reverter suas mudanças?
Francisco será lembrado como um papa que não governou para agradar, mas para transformar. Sua marca não será um dogma, mas um chamado: para que a igreja abandone o medo, saia às ruas e cumpra sua missão verdadeira. Ele ensinou que a religião sem compaixão é apenas um ritual, e que um líder só pode ser grande quando se ajoelha diante dos que sofrem.
E quando Francisco encontrar o Pai, saberemos que sua última lição foi esta: que um papa não se mede pelos títulos, mas pelos os que dá em direção aos que mais precisam.
Mas o que será desse legado se o próximo a sentar-se no trono de Pedro for um homem disposto a reverter os os que Francisco deu? Poderá a igreja, depois de aprender a escutar, escolher voltar a falar sozinha? Poderá um novo papa desfazer as pontes que esse construiu e erguer novamente os muros que ele derrubou? Será a igreja capaz de seguir o caminho que ele iluminou ou optará pelo conforto do ado? Se o futuro escolher o medo, Francisco será uma lembrança que dói. Se escolher a coragem, será uma semente que floresce.
Ave Francisco, Non te oblitur te salutant - os que não te esquecerão te saúdam.
José Manuel Diogo é presidente da Associação Portugal Brasil 200 anos
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