
Tancredo Neves é sepultado em São João del Rei. O Brasil vive um doloroso e longo luto, que começou quando as más notícias pós-primeira operação, em 14 de março de 1985, começaram a circular. José Sarney era o presidente interino e, nesta condição, muito esforço alguns dos "seus" ministros fizeram para que dela não asse. Jogou-se tudo na volta do presidente de fato, mas o destino quis o contrário. Sarney tornara-se "o" chefe de um governo complexo e de um Estado desafiador, como se verá neste capítulo da série 40 Anos de Democracia.
Às 22h25 de 21 de abril de 1985, recebe o telefonema do publicitário Mauro Salles avisando que Tancredo morrera. Quatro minutos depois, o porta-voz Antônio Britto faz o anúncio à nação. Na sequência, é a vez de Sarney dirigir-se à população:
"Deus é testemunha de que eu lhe entregaria o melhor dos meus dias para não enfrentar a fatalidade desta hora: Tancredo Neves morreu. Eterniza-se com ele a legenda do idealismo que comoveu, num movimento sem precedente em nossa História, as praças e as ruas do Brasil com a bandeira da Nova República".
Novos ares
Efetivado na Presidência da República, no Palácio do Planalto percebe-se a primeira mudança: a forma no tratamento. Os modos gentis e pacientes de Sarney contrastavam com a irritabilidade de João Baptista Figueiredo e a secura de Ernesto Geisel, generais presidentes imediatamente anteriores a ele. O ambiente era bem mais ameno. Agora, falava-se num médio tom de voz, pedia-se e não ordenava-se, e o despojamento deixara de ser uma espécie de insulto.
"Eu tinha tudo para não terminar o mandato. Aliás, eu não tinha condições nem de começar. Eu era um vice-presidente fraco, que não participara das escolhas de governo, nem fora consultado. Alguns setores das Forças Armadas, fiéis ao presidente Figueiredo, como os generais promovidos no esquema da revolução, olhavam-me com muitas reservas. Todo o esquema das forças políticas me era hostil", confessou, em depoimento a Benedito Buzar, incluído em Sarney: o outro lado da história, organizado por Evandro Oliveira Bastos.
Os problemas na arrancada do novo governo levaram a previsões altamente pessimistas. Havia quem apostasse que o agora presidente não seguraria o rojão, jogaria a toalha e o Brasil mergulharia numa crise institucional pior que a da renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. Além disso, Sarney era pressionado pelos velhos companheiros da Frente Liberal a colocar um freio em Ulysses Guimarães, cardeal do PMDB.
Tinha ainda os militares. Alguns pareciam não entender que a chave mudara. Como o general Ivan de Souza Mendes, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), que levou ao presidente um dossiê sobre supostas amantes do governador fluminense Leonel Brizola. Sarney não quis conversa: rasgou a papelada e ordenou que, dali em diante, não se bisbilhotaria a vida privada de ninguém — informação classificada, somente aquela que dissesse respeito à soberania do Estado e aos interesses do país. É o que relata Regina Echeverria, em Sarney, a biografia.
A primeira grande reunião de governo é em 7 de maio, quando se fecharam os termos do "emendão" que seria remetido ao Congresso. A proposta de emenda constitucional (PEC) restabelecia a eleição direta para presidente e vice, por maioria absoluta, em dois turnos; eleição, em 15 de novembro de 1985, para prefeitos das capitais, municípios recém-criados, antigas áreas de segurança nacional e estâncias hidrominerais; direito de voto dos analfabetos; fim da fidelidade partidária; representação política do Distrito Federal, a partir de 1986 — entre outras questões.
Concertação
Sarney sonhava, ainda, em costurar uma grande concertação política, inspirada nos Pactos de Moncloa — assinados em 1977 e que completaram a transição da ditadura de Francisco Franco para a democracia na Espanha, restaurando a monarquia parlamentarista. Queria entregar a coordenação a Ulysses, que, por sua vez, acreditou tratar-se de uma manobra para esvaziá-lo e ao PMDB. A ideia não prosperou.
A chamada "lua de mel" entre novo governo e opinião pública não existiu. Se sentou na cadeira, tem cobrança, tem exigência, tem decisão. Apesar da paciência e da vontade de atender a todos, a pressão sobre Sarney aumentava exponencialmente. O primeiro desgaste político foi no Ministério da Cultura, pelo qual o presidente tinha especial carinho. José Aparecido de Oliveira deixou a pasta para disputar o governo do DF e colocou Aluísio Pimenta em seu lugar. Do novo ministro, Sarney sabia apenas que tinha sido reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, de 1964 a 1967, e que fora cassado como professor da UFMG pelo Ato Institucional (AI) 5, em 1968.
O segundo desgaste foi com a invasão da Esplanada dos Ministérios pelos produtores de soja, que pressionaram o governo a assumir os prejuízos por causa da queda do preço da commodity. Em paralelo, cobravam linhas de crédito para plantio e investimentos. Como forma de protesto, fecharam a via que desce na direção do Congresso com caminhões e tratores e distribuíram 15 toneladas do grão a quem quisesse e tivesse disposição para levar.
Em 18 de junho, é a vez de os prefeitos invadirem a capital para colocar Sarney contra a parede. Nada menos que cerca de 1,5 mil vieram a Brasília, liderados pelo então vice-governador paulista Orestes Quércia, que acumulava a presidência da Associação Paulista de Municípios. A reivindicação: aumento no percentual de ree às prefeituras dos recursos do Fundo de Participação de Estados e Municípios.
Tais manifestações eram simplesmente impossíveis até meses antes, pelo simples fato de que não seriam permitidas ou reprimidas pelo choque da Polícia Militar. Represadas por tanto tempo, os atos expressando indignação ou reivindicatórios tornaram-se "programas" frequentes e nacionais. Algo semelhante aconteceria em relação ao Parlamento: se antes o general-presidente, fosse qual fosse, recebia no Palácio do Planalto apenas os governistas do Congresso, e um ou outro líder da oposição que dos militares merecesse consideração, agora, na Nova República, as audiências políticas estavam abertas a todos. Sarney, por causa disso, tirou as terças-feiras como o dia da romaria de deputados e senadores. Das 9h às 19h, ficava à disposição dos políticos, por ordem de chegada — confirma a biógrafa Regina Echeverria.
Os contatos com a imprensa também aram a ser habituais. Em 17 de junho, Sarney concede a primeira coletiva, evento impensável até então. Com o general Emílio Médici, sob a sombra do AI-5 e censura aos meios de comunicação no mais alto grau, governo e jornalistas viviam em continentes distintos e distantes. Nos tempos de Ernesto Geisel, a regra do silêncio se manteve e somente depois da abertura, já com João Baptista Figueiredo, é que os repórteres começaram a se aproximar. Assim mesmo, sob o risco de alguma intimidação, de escutarem uma resposta ríspida ou de tomarem um safanão de um segurança. O último general-presidente jamais escondeu a ojeriza à liberdade de imprensa e de seus representantes.
Em 28 de junho, o presidente assina a PEC que convocava a Assembleia Nacional Constituinte, a partir de 1º de fevereiro de 1987, que elaboraria a oitava Constituição brasileira — a promulgação se daria depois de aprovado seu texto pela maioria absoluta dos membros do colegiado. Antes, em 18 de junho, por meio do Decreto 91.450, nomeia o jurista Afonso Arinos de Mello Franco presidente da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais (depois conhecida como Comissão Afonso Arinos), para preparar um anteprojeto para a nova Carta. Entre os 50 integrantes do colegiado, estavam Antônio Ermírio de Moraes (empresário e então comandante do grupo Votorantim), Barbosa Lima Sobrinho (advogado e presidente da Associação Brasileira de Imprensa/ABI à época), Cristovam Buarque (futuro governador do Distrito Federal, ministro da Educação e senador) — entre outros.
Unanimidade?
Uma nova Constituição, porém, não era uma unanimidade, tampouco encarada como solução para os males do Brasil até aquele momento. A possibilidade de se elaborar uma nova Carta era vista com ceticismo por muitos, como o economista e diplomata Roberto Campos — avô do ex-presidente do Banco Central nos governos Bolsonaro e Lula 3. Em 6 de janeiro de 1985, escreve um artigo — reunido no livro Guia para os perplexos — intitulado Reservatórios de utopias. "Um misto de panaceia e paixão. Assim é vista a 'constitucionalite' de nossos dias, ao menos pelos de minha geração, que assistiram ao nascimento e o ocaso de nada menos cinco Constituições — a de 1934, a de 1937, a de 1946, a de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969. Duas delas outorgadas, duas votadas por Assembleias Constituintes (1934 e 1946), uma votada por um Congresso Constituinte. Esse generoso ecletismo de métodos e textos não impediu que nossos problemas prosseguissem impávidos — subdesenvolvimento, inflação, instabilidade institucional", observa, para acrescentar: "Se obedecido o texto constitucional de 1967, o Brasil não teria inflação nem estatismo".
A situação econômica do país era precária. Numa tentativa de colocar alguma ordem nas contas públicas, foram aprovadas medidas que limitaram os investimentos do governo em obras, cortaram cerca de 40 trilhões de cruzeiros o orçamento das estatais, congelaram as tarifas públicas e anteciparam o recolhimento de impostos do setor privado. Tais intervenções elevaram a popularidade de Sarney, que pulou para 57% conforme medição do antigo Ibope.
Na política, o fim da censura tornara-se realidade. Semanas antes do AI-5, a Lei 5.536, de 21 de novembro de 1968, criou o Conselho Superior de Censura. Em 2 de julho de 1972, o Decreto 70.665 estabeleceu a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), subordinada à PF. Toda essa estrutura do Ministério da Justiça foi desmontada. Não se veria mais, antes das novelas, programas de tevê e filmes, o infame slide que reproduzia a liberação da obra assinado por Solange Maria Chaves Teixeira Hernandes — a tristemente célebre "dona Solange", que comandou, entre 1981 e 1984, a máquina de vetos e cortes da DCDP.
O fim da censura era um momento de euforia. Por conta disso, foi o ministro da Justiça, à época Fernando Lyra, quem anunciou a virada de página a um grupo de representantes das artes e da cultura, em um jantar numa churrascaria do Rio de Janeiro. Mas, ao referir-se a Sarney para exaltar-lhe a trajetória política, embolou-se com as palavras: classificou o presidente como um homem da "vanguarda do atraso". Quem agradeceu a mancada foi o multi-intelectual Millôr Fernandes, que por meses atormentou o presidente com a expressão.
O governo era de Sarney, mas o ministério de Tancredo. A primeira baixa foi em agosto de 1985, na Fazenda. O titular Francisco Dornelles estava nos Estados Unidos, negociando a dívida brasileira com bancos credores, quando, no Brasil, Marcos Vidal, que assumira a pasta interinamente, criticou publicamente a política econômica. O presidente cobrou do titular a demissão do substituto e recebeu não como resposta. Os dois foram dispensados.
No dia 26 daquele mês, assume Dilson Funaro, até então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, antecessor do BNDES) e que esteve à frente do Plano Cruzado. A inflação em agosto, já com o novo ministro da Fazenda, fechou em 14% e a de 1985, em 235,13%.
"Não vou presidir a eleição dos constituintes com um país assoberbado por esta taxa de inflação", disse Sarney ao ministro do Planejamento, João Sayad, primeiro convidado a substituir Dornelles. O registro está em Sarney: o outro lado da história. O presidente deixa evidente que os dois assuntos se conectavam. Em 3 de setembro de 1985, instalou-se a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais e nos meses seguintes rascunha-se um pacote para domar o "dragão" da inflação.
Plano Cruzado
O resultado desse esforço é anunciado em 28 de fevereiro de 1986. O Plano Cruzado (Decreto 2.283) muda o nome da moeda de cruzeiro para cruzado; congela os salários e os preços de produtos e serviços; e aplica o gatilho salarial a cada vez que a inflação ultraasse 20% — entre outras medidas.
Foi a época em que os agentes da Superintendência Nacional de Abastecimento e Preços (Sunab) tornaram-se a polícia dos comércios e serviços, prendendo sonegadores e decretando o fechamento de estabelecimentos que desrespeitassem o tabelamento. A sociedade se mobiliza pelo cansaço da escalada de remarcações. Entram em cena os "Fiscais do Sarney", atentos ao som inconfundível das etiquetadoras. Munidos das listas de preços publicadas na imprensa e canetas, conferiam as gôndolas e exigiam que o que tinha sido pago num produto, ontem, valesse para hoje e para amanhã.
Para galvanizar o apoio popular, dois poderosos nomes das comunicações, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni) e João Carlos Magaldi, entram na campanha pela estabilização econômica e bolam um slogan para o Cruzado: "Tem que dar certo". Sucesso imediato.
O plano contou, inclusive, com o endosso da economista e professora Maria da Conceição Tavares, conhecida pelo histrionismo e pelo inseparável cigarro. Ela até chorou, ao final de um debate na tevê sobre a economia, e classificou o pacote econômico como "o projeto mais sério" que presenciou no Brasil. A popularidade de Sarney, de Funaro e do governo dispara.
Para tentar ampliar a base de apoio político, o presidente promove uma reforma ministerial. Assumem Íris Rezende (Agricultura), Marco Maciel (Casa Civil em substituição a José Hugo Castello Branco, realocado na Indústria e Comércio), Celso Furtado (Cultura), Jorge Bornhausen (Educação), Paulo Brossard (Justiça), Raphael de Almeida Magalhães (Previdência), Abreu Sodré (Relações Exteriores), José Reinaldo Tavares (Transportes), Vicente Fialho (Irrigação) e Saulo Ramos (Consultoria-Geral da República). Era a hora de surfar na onda de apoio popular.
A boa maré se confirma com a deflação de 1,48% em abril. O presidente bate bumbo em pronunciamento na tevê afirmando que "a inflação acabou". Até o sambista Bezerra da Silva, conhecido pelas canções cujas letras relatam o dia a dia das favelas cariocas, exaltou o plano econômico gravando a música A rasteira do presidente. Diz a letra: "Alô, alô, dona de casa/ Fiscais do presidente, se liga/ Tabela de preços na mão/ E vamos lutar contra a inflação/ Se liga tubarão/ E não é mole não/ Vivendo dessa maneira/ Eles inventaram essa tal de inflação/ E o presidente deu aquela rasteira/ Não é mole não".
A euforia dura até junho, quando o Cruzado dá os primeiros sinais de fraqueza. Com o aumento da demanda e os preços congelados, os produtos desaparecem. Uma parte dos fornecedores amarga prejuízos e, por não dar conta de continuar abastecendo as prateleiras dos supermercados, baixa as portas. A outra parte segura a produção para forçar o governo a liberar o reajuste. Naquele mês, Sarney exorta a população a continuar fiscalizando os preços e a denunciar os abusos à Sunab — cujas delegacias estavam entupidas de reclamações dos consumidores. A primeira medida radical para sustentar o Cruzado deu-se em 9 de julho: a proibição das exportações de carne.
Não era apenas na economia que o governo andava no fio da navalha. Na política, a comissão que vinha trabalhando no pré-projeto da nova constituição foi torpedeada por Ulysses.
"Ulysses não aceitava, queria fazer a Constituinte a partir do zero. Disse que devolveria o projeto. Argumentei que Tancredo havia prometido nomear esta comissão, mas Ulysses radicalizou", lembrou Sarney à sua biógrafa. O pré-projeto foi arquivado, para indignação de Arinos e Brossard. O presidente explicou a situação aos dois, que com muita relutância aceitaram as ponderações.
Cruzado II
Seguindo a máxima de que "toda decisão econômica é política", em novembro de 1986 o governo autoriza o reajuste de 60,16% nos preços dos combustíveis, poucas horas depois de encerrada a contagem dos votos que deu ao PMDB uma maiúscula vitória no dia 15. O partido de Sarney elegeu 260 deputados federais, 44 senadores e teria imensa maioria na Assembleia Nacional Constituinte. Ainda levou 22 governos estaduais — capazes de fazerem uma irresistível pressão sobre as bancadas.
Seis dias depois da eleição, em 21 de novembro, o Brasil toma conhecimento do Plano Cruzado II, que praticamente foi na direção contrária à do Cruzado. Segundo o Atlas Histórico do Brasil, da Fundação Getulio Vargas, "o pacote aumentou impostos indiretos, reajustou preços de bens e serviços que estavam completamente defasados, concedeu alguns subsídios para as exportações, e expurgou do índice da inflação as variações de preços de produtos considerados supérfluos, como cigarros e bebidas. O fracasso desta última tentativa de salvar o Plano Cruzado deveu-se, única e exclusivamente, ao fato de que as origens do processo inflacionário brasileiro não foram atacadas. Isto é, o financiamento do deficit público pela emissão de moeda não foi estancado e o regime monetário-fiscal-cambial não foi alterado." A Regina Echeverria, Sarney itiu: "O maior erro que cometi na minha vida foi o Plano Cruzado II. Eu preferia ter cortado a minha mão a ter assinado aquilo".
Apesar de a Carta de 1988 ser, hoje, considerada o maior legado de Sarney para a democracia brasileira, e fator de confirmação do Estado de Direito nessas quatro décadas, à época isso não foi compreendido por setores da política e da economia. Até o fim do governo, houve ainda os planos Bresser (junho de 1987) e Verão (janeiro de 1989). Na virada deste ano para 1990, a inflação atingiu 1.972,91%.
Saiba Mais