O papa de todas as fés

Das últimas horas do papa Francisco ao futuro incerto da Igreja Católica

Vaticano divulga detalhes sobre a morte de Francisco e revela que ele agradeceu ao enfermeiro por ter se aproximado dos fiéis, no domingo. Ritos fúnebres começam em meio às dúvidas sobre os rumos da Igreja Católica

O presidente da Itália, Sergio Mattarella, e a filha Laura prestam tributo ao papa Francisco, diante do caixão, na Capela de Santa Marta  -  (crédito: Imprensa do Vaticano/AFP)
O presidente da Itália, Sergio Mattarella, e a filha Laura prestam tributo ao papa Francisco, diante do caixão, na Capela de Santa Marta - (crédito: Imprensa do Vaticano/AFP)

A imagem do corpo de Francisco dentro de um caixão de madeira, na Capela de Santa Marta, lança incertezas sobre os rumos da da Igreja Católica. Com um de seus principais reformistas morto, existem dúvidas sobre se instituição seguirá a visão progressista do pontificado do jesuíta argentino e se continuará no rumo da abertura dogmática. Depois da Confirmação da Morte do Pontífice — um dos ritos fúnebres dedicados ao papa —, o cortejo fúnebre deixará a capela às 9h desta quarta-feira (4h em Brasília) e seguirá até a Basílica de São Pedro, onde ficará exposto para visitação pública até sábado. Vestido com uma túnica púrpura e com uma mitra, Francisco tem um terço nas mãos. Dentro do caixão, foi colocado um cilindro de metal com o resumo do pontificado.

No domingo de Páscoa, um fragilizado Francisco perguntou ao enfermeiro particular Massimiliano Strappetti: "Você acha que consigo fazer isso?". Durante 15 minutos, Francisco abençoou bebês, a bordo do papamóvel. Ao fim do percurso, dirigiu as últimas palavras ao assessor: "Obrigado por me trazer de volta à praça". Descansou à tarde, no apartamento 201 da residência de Santa Marta, e teve um jantar tranquilo. Voltou a chamar Strappetti às 5h30 de segunda-feira, 21 (0h30 em Brasília), quando ou mal. Antes de entrar em coma, levantou a mão, como um gesto de adeus, e morreu às 7h35. 

O site Vatican News publicou o prefácio de um livro escrito pelo cardeal Angelo Scola, que será lançado nesta quinta-feira. No texto, o papa reflete sobre a velhice e a morte. "É verdade, nos tornamos idosos, mas este não é o problema: o problema é como nos tornamos idosos. Se vivemos o tempo da vida como uma graça, e não com ressentimento; se aceitamos o tempo no qual experimentamos a redução da força", escreveu. "A morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo. É um novo começo. A vida eterna (...) é o começo de algo que nunca acabará."

Nomeações

Para o vaticanista norte-americano Thomas Reese, analista do site Religion News Service, Francisco fez o que qualquer pontífice faria, ao escolher 108 dos 135 cardeais aptos a votar no próximo conclave. "Ele nomeou cardeais que refletiam suas visões sobre a Igreja. Apesar disso, pode haver surpresas. Os cardeais que foram escolhidos por João Paulo II e por Bento XVI escolheram Jorge Mario Bergoglio para papa", lembrou ao Correio. Reese acredita que o desafio da Igreja será manter a unidade em uma instituição composta por pessoas de todas as raças, nacionalidades e ideologias. "A Igreja também precisará lidar com um declínio no número de padres e com um número crescente de pessoas 'sem religião' no mundo, especialmente entre os jovens."

O italiano Salvatore Cernuzio, também vaticanista e jornalista do L'Osservatore Romano e da Radio Vaticana, prevê que a Igreja permanece fiel a como tem sido ao longo dos séculos, "semper reformanda" (sempre em reforma, em latim). "A contribuição do papa Francisco é idelével. Ele iniciou processos: em andamento, concluídos e irreversíveis, até mesmo para aqueles que virão depois dele", disse à reportagem. "Penso, em particular, no maior espaço para as mulheres; nos múltiplos papéis confiados aos leigos; na sinodalidade; em uma gestão mais colegial da Igreja; na atenção especial aos pobres, aos migrantes, às vítimas da guerra. Essas foram portas abertas para o futuro, as quais dificilmente poderão se fechar."

Especialista em cristianismo pela Faculdade da Divindade da Universidade de Chicago, Erin Galgay Walsh destacou que, durante o seu pontificado, Francisco foi uma voz para os marginalizados dentro da Igreja e no mundo. "Ele atendeu às principais crises de nossa era: as mudanças climáticas, os refugiados, a guerra, a disparidade de renda. Enquanto divisões permancem entre os católicos sobre o local da Igreja no mundo e o seu futuro, o seu exemplo de humildade persistirá nos corações e nas mentes de fiéis e agnósticos, que olharam para a sua lidearança moral", explicou ao Correio.

Diálogo

Walsh avalia que, à medida que o funeral e o conclave se desenrolarem, será possível ver até que ponto o diálogo e o consenso caracterizarão o trabalho dos cardeais. "O próximo papa enfrentará desafios familiares e inéditos, mas a adoção da liderança servidora de Francisco permanecerá como modelo poderoso para o seu sucessor."

De acordo com o teólogo e vaticanista americano Joseph Fessio, ex-aluno de doutorado de Bento XVI, a Igreja precisa de um papa. Apesar disso, ele não vê com alarmismo um guia espiritual diferente de Francisco. "Jesus estabeleceu um papado permanente. Enquanto rezamos por papas santos, receptivos à vontade de Deus e aos impulsos do Espírito Santo, o nosso compromisso pessoal com o Senhor não depende de nenhum papa em particular. Os papas são humanos, assim como nós, e eles terão suas forças e fraquezas."

Amigo de Francisco havia 18 anos e ex-secretário de imprensa do então arcebispo Jorge Mario Bergoglio, o jornalista argentino Federico Walls disse ao Correio que as reformas iniciadas pelo papa, as medidas tomadas e o rumo tomado pela Igreja são irreversíveis. "Sinto que esse é o caminho da Igreja para o tempo que vivemos. Francisco deu continuidade a muitas das medidas decisórias e impôs seu próprio toque. Ele quis uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja que sai e se aproxima dos excluídos e dos invisíveis. Uma Igreja que denuncia a situação socioambiental que vivemos e mantém voz nos organismos internacionais. Este é o legado de Francisco, acredito que a Igreja caminhará por essa senda." 

EU ACHO...

Thomas Reese, vaticanista americano e analista do site Religion News Service
Thomas Reese, vaticanista americano e analista do site Religion News Service (foto: Arquivo pessoal )
"A Igreja sem Francisco terá que enfrentar problemas, como a guerra, a pobreza, os refugiados, o aquecimento global. Também temas religiosos, como o ecumenismo e a cooperação interreligiosa."
Thomas Reese, vaticanista americano e analista do site Religion News Service
Joseph Fessio, teólogo e vaticanista norte-americano
Joseph Fessio, teólogo e vaticanista norte-americano (foto: Wikipedia/Reprodução)
 "O que espero sobre o futuro da Igreja? O inesperado. A curto prazo: ninguém sabe. A médio praz: ninguém sabe. A longo prazo: tudo está no céu ou no inferno."
Joseph Fessio, ex-aluno de doutorado de Bento XVI, teólogo e vaticanista americano

AMIZADES PARA A ETERNIDADE

 

"Ele batizou o meu filho e deu a comunhão à minha filha"

"O meu primeiro contato com o padre Jorge Mario Bergoglio ocorreu em 1998, quando ele, como sacerdote e bispo auxiliar da Arquidiocese de Buenos Aires, necessitava de alguns trabalhos que tinham a ver com a construção da medalha da Virgem de Santa Lourdes, uma devoção que ele trouxe da Alemanha. Sou orfeu e me pediu que fizéssemos a medalha. Tivemos uma boa sintonia e começamos uma amizade. Meu ateliê ficava a oito quadras da Arquidiocese. Depois que deixei o ateliê, o cardeal Jorge Mario Bergoglio viu que eu ficava só e nao tinha a companhia de minha família. Um dia, ele me perguntou como estava e eu disse a ele que só poderia oferecer-lhe conversas, pois tinha abandonado o negócio da minha família. Bergoglio prometeu me acompanhar e me ajudar. Desde então, nunca deixou de estar presente. 

Adrián Pallarols, ourives e prateiro de Buenos Aires, amigo do papa Francisco
Adrián Pallarols, ourives e prateiro de Buenos Aires, amigo do papa Francisco (foto: Arquivo pessoal )

Foi Bergoglio que me casou, quem deu a primeira comunhão à minha filha sca, em Roma, e quem batizou o meu filho Matteo Francisco. Nós compartilhamos quase 28 de anos de trabalho, de viagens. Para mim, a parte mais importante de Francisco como ser humano e sacerdote foram as lições de vida frequentes. Ele ensinou-me que a incondicionalidade afetiva e a liberdade sempre foram pilares de todos os tipos de vínculos. Vi Francisco pela última vez no fim de janeiro deste ano, em 2025, quando visitamos Roma. Falamos de questões da família e desfrutamos de uma tarde, como amigos. Levei a ele alfajores e chocolates."   

Adrián Pallarols, ourives e prateiro de Buenos Aires, amigo do papa Francisco

No metrô com Bergoglio 

"Conhecia o padre Francisco desde março de 2007. Trabalhei com ele até que o fim de fevereiro de 2013, quando deixou Buenos Aires e foi a Roma para o conclave. Então, o elegeram papa. A relação trabalhista cresceu, se enriqueceu. Ele não apenas foi um patrão para mim, mas também um pai. Alguém que me acompanhava, me guiava e me aconselhava, sempre de braços abertos. Essa proximidade continuou mesmo enquanto ele estava em Roma. Eu me lembrarei dele como um pai, que sempre esteve presente. Alguém que nos ensinou a ser simples e humildes.

Federico Walls (D), secretário de imprensa do cardeal Jorge Mario Bergoglio (E), dentro de vagão, em Buenos Aires
Federico Walls (D), secretário de imprensa do cardeal Jorge Mario Bergoglio (E), dentro de vagão, em Buenos Aires (foto: Arquivo pessoal)

Há uma foto em que apareço ao lado dele. Ela foi feita no metrô, em 2008. Nós voltávamos do bairro de Once, em Buenos Aires, e desembarcamos perto da Catedral, onde ele celebrou a missa de Corpus Christi. Francisco e eu partilhávamos o metrô, o ônibus e o trem. Ele gostava do contato com a população."

Federico Walls (D), secretário de imprensa do cardeal Bergoglio (E), dentro do metrô

  • Thomas Reese, vaticanista americano e analista do site Religion News Service
    Thomas Reese, vaticanista americano e analista do site Religion News Service Foto: Arquivo pessoal
  • Joseph Fessio, teólogo e vaticanista norte-americano
    Joseph Fessio, teólogo e vaticanista norte-americano Foto: Wikipedia/Reprodução
  • Adrián Pallarols, ourives e prateiro de Buenos Aires, amigo do papa Francisco
    Adrián Pallarols, ourives e prateiro de Buenos Aires, amigo do papa Francisco Foto: Arquivo pessoal
  • Federico Walls (D), secretário de imprensa do cardeal Jorge Mario Bergoglio (E), dentro de vagão, em Buenos Aires
    Federico Walls (D), secretário de imprensa do cardeal Jorge Mario Bergoglio (E), dentro de vagão, em Buenos Aires Foto: Arquivo pessoal
postado em 23/04/2025 06:00
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