
Às 6h40, Áura Dias da Cruz, 62 anos, está de prontidão em frente à Penitenciária Federal do DF (PDF 1), no Complexo Penitenciário da Papuda. Em um canto da calçada, ela ergue o guarda-sol, ajeita os panos e monta a banca que, em breve, servirá de guarda-volumes para os visitantes dos presos. A mulher tira o sustento das pequenas vendas de sacolas plásticas e do armazenamento improvisado no local.
Quase invisível aos olhos do poder público — e frequentemente julgado pela sociedade —, o pequeno comércio ao redor do sistema prisional é uma iniciativa de empreendedorismo popular, que garante renda para pelo menos 20 chefes de família brasilienses.
Às 7h, Áura começa a receber os familiares dos presos para a primeira visita do dia. Eles procuram os trabalhadores informais para guardar — enquanto estão dentro do presídio — pertences como aparelhos eletrônicos, bolsas e alianças. O processo para cruzar os muros do cárcere é rigoroso.
Além da retirada da senha, da fila e da revista, por questões de segurança e padronização visual, a Secretaria de istração Penitenciária (Seape-DF) proíbe a entrada com celular, chave, bolsa, órios, óculos de sol e espelho. Sandálias e roupas, incluindo peças íntimas, devem ser brancas, sem transparência ou miçangas.
Discreto, o trabalho dos ambulantes às margens do sistema penal existe há quase 30 anos, e Áura foi uma das primeiras a começar no ramo, em 2000. Antes disso, trabalhou como empregada doméstica em duas casas, no Núcleo Bandeirante e na Asa Sul. A mulher conta que conheceu o serviço por meio da cuidadora do pai. "Ela tinha um filho preso e ia três vezes por semana (para a Papuda) trabalhar. Uma vez, me convidou para acompanhá-la."
O trabalho é às quartas e quintas-feiras, das 7h às 16h, horário da última visita. Áura fatura cerca de R$ 150 por dia, um rendimento mensal de R$ 1,2 mil. A meta é guardar 30 bolsas por dia de visita, a R$ 5 cada. O salário, segundo ela, é suficiente. Separada e mãe de três filhos adultos, Áura mora sozinha na Estrutural. "Gosto do trabalho, faço para mim mesma, mas é inseguro. Se você para, adoece ou tem qualquer intercorrência, fica sem dinheiro", desabafou.
Para ter alguma segurança e garantir algum respaldo previdenciário, a mulher paga mensalmente a taxa do Microempreendedor Individual (MEI). O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) defende que o MEI é alternativa para a informalidade. Nessa condição estava 38,6% da população ocupada no trimestre encerrado em maio, o equivalente a 39,13 milhões de pessoas, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE.
Assistência
Os trabalhadores informais do sistema prisional, diferentemente dos que atuam em feiras livres, precisam se submeter a uma série de restrições, inclusive, com relação ao perímetro onde circulam. Lidam com um público vulnerável e servem não só como vendedores, mas como e emocional para familiares de detentos.
O sistema penal tem 19.049 pessoas aptas a visitar os presídios da capital, segundo a Seape-DF. Por trás dos os apressados para pegar senha, guardar a bolsa, enfrentar a fila e, finalmente, entrar na unidade, surgem rostos marcados pela tristeza e pelo cansaço. São mães, pais, esposas, irmãos e filhos frente a frente com o sistema. Cada um carrega uma história. Dona Áura leva um pouco de todas.
Há 25 anos no "camarote" da Papuda, faz mais do que o papel de autônoma: se vira como assistente social e psicóloga para familiares que, por vezes, chegam e saem desnorteados e em desespero. "Escutamos e vimos de tudo. Conheci mulheres que visitavam os maridos, engravidaram em visitas íntimas, tiveram os filhos e, hoje, visitam esses filhos na cadeia."
As histórias parecem se repetir, mas ela procura confortar as pessoas com palavras de força. "Têm mães que visitam um filho nessa unidade (PDF 1) e um filho em outra cadeia, no mesmo dia. Outras pensam que será a última visita e comemoram. Dois meses depois, estão aqui de novo", contou.
Regulamentação
Uma portaria de 28 de janeiro deste ano regulamentou o exercício da atividade de guarda-volumes por ambulantes na Papuda. A autorização foi concedida pela istração Regional do Jardim Botânico, depois de muitas tratativas. O da região, Aderivaldo Martins Cardoso, afirma que o limite permitido na área restrita é de 25 cadastros.
"Detectei que a istração era responsável pelo território e pela licença dos ambulantes. Havia um conflito de competência com relação à atividade dos policiais penais e a nossa. Então, sugeri ao secretário (da Seape-DF) a emissão das licenças aos trabalhadores", comentou o .
Nas adjacências das unidades prisionais, é proibida a comercialização de alimentos ou de quaisquer itens, como kits de higiene, medicações e roupas — produtos autorizados a entrar com o visitante na chamada "cobal", pacote com utensílios para o detento. Os comerciantes questionam.
"A ideia deles é garantir uma renda a mais com o aluguel ou a venda de itens adicionais. Às vezes, chega um visitante com uma sandália que não é permitida, ou uma calça com um detalhe na barra. Quando isso ocorre, a pessoa perde a visita. Caso fosse permitido, o vendedor do lado de fora poderia oferecer os padrões exigidos", explicou o .
Josy Dias da Cruz, 44, é filha de Áura e trabalha como guarda-volumes há 16 anos. Desde 2021, está à frente da Associação dos Ambulantes do Sistema Prisional do DF (AASP). A entidade surgiu em 2013 e conta com 21 pessoas habilitadas. Após 12 anos de mobilização, conquistou o reconhecimento oficial da Seape-DF. "Essa portaria foi uma vitória, porque mostra que estamos sendo reconhecidos pela istração penitenciária. Em breve, receberemos a credencial como trabalhadores e isso é histórico no país", comemora Josy.
A ambulante também encontrou no sistema prisional uma forma de sobreviver. Antes, prestava serviço a uma empresa de comunicação, em Taguatinga, e, de um dia para o outro, viu a loja de portas fechadas. "Cheguei para trabalhar e encontrei as portas abaixadas. Toda a equipe ligava para os donos, mas não atendiam. Depois, soubemos que tinham decretado falência". Foi necessária uma ação coletiva na Justiça para receber os direitos. "Só vi o dinheiro depois de seis anos."
Em 2016, quando uma das irmãs de Josy engravidou, ela ou a acompanhar a mãe à Papuda. Foi quando viu a oportunidade de montar um negócio. À época, começou a trabalhar com a emissão de senhas para a entrada dos visitantes. Ela investiu na compra de um gerador de energia, que ligava ao carro. Com um notebook e uma impressora, tirava as senhas e cobrava entre R$ 1 e R$ 2.
O sistema de emissão mudou, em 2022, e Josy se reinventou para atuar na função de guarda-volumes. Começou em frente à PDF 1 e, depois, mudou de ponto, para o Centro de Detenção Provisória (CDP), onde concorre com dois comerciantes. A renda mensal gira em torno de R$ 800, complementados com costuras de bolsas personalizadas. "Procuro fazer tudo certo aqui para não ser punida, como aconteceu uma vez, quando os policiais encontraram farofa comigo. Esse é um dos alimentos que os visitantes podem levar, mas não pode ser vendido aqui na porta." A punição é regulamentada pela Seape-DF. Caso seja detectada qualquer irregularidade, o trabalhador pode ser suspenso pelo prazo de 30 a 90 dias.
Das bancas ao presídio
Longe do perímetro de segurança, feirantes se espelharam no sistema prisional para manter-se financeiramente. No Shopping Popular de Ceilândia, quatro barracas vendem roupas e peças íntimas brancas a visitantes dos detentos ou para compor a "cobal".
Gilvan Ferreira, 45, é dono de duas delas. Há mais de 15 anos trabalhando com roupas, ele vendia peças jeans, mas mudou de rota em 2016, quando começou a receber pedidos de clientes para roupas brancas. O regulamento da Seape-DF descreve quantas e quais peças podem entrar no presídio. Camisetas regatas, polo, com botões ou estampadas, por exemplo, são proibidas. As bermudas precisam ser em tecido tactel, poliamida, poliéster, dryfit ou moletom, sem zíper ou cordão.
Para atender às exigências, ele aposta no trabalho dos fabricantes e das amigas costureiras. O lucro em cima de cada item vendido é de 30% a 40%. "Temos que manter um preço bom para o cliente levar. Bermuda ou camiseta varia de R$ 20 a R$ 25", detalhou.
Gilvan paga R$ 500 por mês de aluguel por uma das bancas e ite perder as contas quando o assunto é renda. Nascido em Nossa Senhora dos Remédios (PI), deixou o estado aos 22 anos, para tentar a vida em Brasília. Sonhava com estabilidade, mas não esperava entrar para o mundo do empreendedorismo. "Confesso que não costumo contar o salário. É o suficiente para viver bem com minhas duas filhas e minha esposa. Tirando o fato de que trabalhar para a gente mesmo é gratificante e prazeroso."
Saiba Mais
Regularização lucrativa
Pesquisa do Sebrae, em parceria com a Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta que os empreendedores aumentam a renda entre
7% e 25% ao registrarem um CNPJ, ganho adicional de quase
R$ 70 bilhões para a economia brasileira. O levantamento mostra que a Receita Federal contabiliza 12 milhões de registros ativos no país.
Três perguntas para | Décio Lima, presidente do Sebrae
Quantos microempreendedores, formais e informais, o Brasil tem?
Antes de avançarmos nos dados, é importante destacar que a informalidade não pode ser tratada com preconceito. Ao analisar a situação dos pequenos negócios, a informalidade deve ser entendida como um meio de ganhar a vida. São aqueles que se viram e buscam o próprio sustento. O empreendedorismo floresce quando há agentes indutores, e o principal ator indutor desse mercado, em qualquer exemplo bem-sucedido do mundo, é o Estado de bem-estar social. Formalizar é proteger e fomentar os segmentos econômicos, permitindo o desenvolvimento e a inclusão.
Quais os desafios enfrentados pelos pequenos negócios em áreas vulneráveis ou com baixa presença do Estado?
Não basta apenas ter o perfil empreendedor, a capacidade de correr riscos, a resiliência, a força de vontade, a criatividade, a disposição, ou saber tomar decisões. Tudo isso é importante, mas uma empresa só tem robustez, só tem vida longa, se vier acompanhada de um ambiente de negócios fortalecido e estruturado pelo Estado de bem-estar social. O Estado é insubstituível como um dos fomentadores essenciais desse desenvolvimento. Na história, podemos citar vários exemplos bem-sucedidos, que só foram alcançados após o investimento público. Em muitos casos, é preciso que o Estado chegue primeiro, crie condições e, depois, o empreendedorismo se desenvolve. O Brasil sabe disso e vem se destacando.
Quais critérios o Sebrae usa para mapear empreendedores "invisíveis" — aqueles que estão fora da formalidade, do o ao crédito e das capacitações?
A informalidade está relacionada a pessoas que empreendem, que trabalham, fazem girar a economia de uma comunidade, de um bairro, de uma cidade. São pessoas que lutam, que acordam cedo todos os dias, que só querem garantir o próprio sustento. Formais e informais impulsionam a economia. Somente no ano ado, o Sebrae realizou, em todo país, o atendimento a mais de 60 milhões de empreendedoras e empreendedores, inclusive, o atendimento a pessoas físicas que buscam capacitação e informações para formalização.