
Assaltos com armas em punho, balaclavas e violência explícita estão dando lugar a uma nova era do crime: silenciosa, invisível e altamente lucrativa. As quadrilhas digitais, compostas por criminosos cada vez mais especializados, trocam o confronto direto pelas telas. Com penas brandas, retorno financeiro elevado e vítimas muitas vezes despreparadas, o cibercrime tornou-se terreno fértil para a atuação de grupos organizados. Um estudo do Instituto de Pesquisa DataSenado mostrou que pessoas com renda de até dois salários mínimos são as mais afetadas no país.
Os golpes são os mais diversos possíveis, desde o Whatsapp clonado a falsas negociações de veículos por meio de plataformas on-line. Recentemente, bandidos aproveitaram até o escândalo de corrupção no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para enganar idosos e pensionistas.
Para além da articulação, da especialização e das fraudes aplicadas por golpistas, o que se vê do outro lado é um cenário devastador: milhares de vítimas emocionalmente abaladas, muitas com perdas financeiras irreparáveis. É o caso de uma professora do DF, de 51 anos, que prefere não se identificar. Ao Correio, ela relatou ter sido vítima do golpe do WhatsApp.
Em agosto, a professora recebeu uma mensagem no aplicativo como se fosse da filha dela. O perfil tinha a foto e o nome da familiar. "Ele (golpista) disse que havia acontecido um problema no celular e que não estava conseguindo entrar em contato por ele, mas que estava nesse novo número e precisava de um dinheiro", disse.
A mulher contou que, num primeiro momento, o golpista pediu R$ 3 mil. Depois, mais R$ 1,5 mil. "Eu acabei ando o dinheiro. Não olhei o nome do comprovante nem questionei o valor. Quando voltei para casa foi que caiu a ficha de que tinha caído em um golpe", explicou, acrescentando que acionou a agência bancária e registrou um boletim de ocorrência, mas era tarde demais.
A pesquisa do DataSenado, realizada em 2024 e divulgada em abril deste ano, entrevistou cerca de 22 mil pessoas. O estudo revelou que os mais afetados por golpes virtuais são jovens entre 16 e 29 anos (27% das vítimas). A faixa com mais de 60 anos, considerada vulnerável por ter migrado para uma realidade totalmente nova, digital, já na idade adulta, representa 16% delas. No grupo de pessoas mais velhas, os criminosos escolhem quais golpes vão aplicar. Entre eles, a clonagem de cartão, golpe do Pix, central de banco fictícia, até a captura de dados por telefone e pela internet.
Escritório do crime
Investigações da Polícia Civil do DF revelam que, em boa parte dos casos, as quadrilhas são de outros estados e montam verdadeiros "escritórios cibernéticos", com horário de funcionamento e computadores, demonstrando um alto nível de organização.
O delegado Erick Sallum, da 6ª Delegacia de Polícia (Paranoá), destacou que os golpistas são, por vezes, jovens com alto conhecimento em softwares. "Por mais de uma vez, quando fomos cumprir mandados de busca, encontramos um verdadeiro escritório, com computadores e telefones, onde o grupo a o dia inteiro em busca de vítimas."
O investigador faz uma comparação entre os crimes patrimoniais, como furtos e roubos, com os de fraude eletrônica. "Um assaltante que vai a uma parada de ônibus com um canivete e rouba um celular de R$ 5 a R$ 6 mil vai conseguir revendê-lo por, no máximo, R$ 2 mil. No caso dos golpes digitais, quando encontram as vítimas certas, os golpistas tiram R$ 100, R$ 200 mil", assinalou.
Os casos de estelionato virtual dispararam entre 2019 e 2020, impulsionados pelo avanço da pandemia de covid-19 e pela digitalização forçada das relações sociais e financeiras no Brasil, afirmou o delegado. Segundo Sallum, foi nesse período de isolamento social que criminosos se aproveitaram não só da situação financeira, mas também da vulnerabilidade emocional. O delegado explica ressaltou que, na maioria dos casos, os criminosos optam por vítimas idosas e, de preferência, com alto poder aquisitivo.
Conscientização
O Correio conversou com Jesaias Arruda, vice-presidente Associação Brasileira de Internet (Abranet), sobre aumento na sofisticação dos ataques cibernéticos e sobre o papel das empresas associadas à entidade em ações de conscientização e na prevenção e combate a crimes cibernéticos. Segundo ele, relatórios indicam que o Brasil registrou mais de 700 milhões de ataques cibernéticos em um período de 12 meses, colocando o país em segundo lugar no ranking mundial de incidência desses ataques.
O vice-diretor explica que as empresas associadas à Abranet participam de iniciativas como o Acordo de Cooperação Técnica com a Polícia Federal, que visa unir esforços na prevenção a fraudes e combate a outros crimes financeiros no ambiente digital. "Promovemos ações de conscientização sobre segurança digital para empresas e usuários. Realizamos alertas de segurança, como no caso do novo recurso 'Comunidades' do WhatsApp, orientando os usuários sobre os riscos associados", afirmou.
Arruda defende medidas para aprimorar a investigação e a repressão a crimes cibernéticos no Brasil, incluindo o alinhamento da Política Nacional de Segurança Cibernética com órgãos e normas existentes, especialmente as relacionadas à proteção de dados.
Saiba Mais
Fraude de veículos
Após dois anos de apuração, policiais civis da Coordenação de Repressão aos Crimes Patrimoniais (Corpatri) desarticularam ontem uma quadrilha responsável por aplicar golpes em negociações de veículos e por adulterar inúmeros automóveis, cujo lucro era objeto de ocultação de patrimônio e lavagem de dinheiro. Foram cumpridos 16 mandados de busca no DF, em Goiás e no Rio de Janeiro, em endereços ligados aos investigados.
A polícia revelou que os criminosos utilizavam plataformas digitais para enganar compradores de carros em sites de comércio eletrônico. Eles simulavam transferências bancárias e apresentavam comprovantes falsos de pagamento e de documentação dos veículos adulterados, convencendo as vítimas a entregarem ou adquirirem os veículos. O grupo comercializava veículos roubados e furtados, que eram adulterados e vendidos a terceiros.
O delegado responsável pelo caso, Guilherme Sousa Melo, contou que a organização criminosa usava laranjas para movimentar recursos financeiros, bem como métodos de pulverização e ocultação do dinheiro obtido com as vendas dos veículos. Eles também sacavam os valores e faziam transferências para terceiros. A polícia calcula o valor do prejuízo causado pela quadrilha.
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Quatro perguntas para
Raíssa Varrasquim Pavon, advogada do escritório Ernesto Borges Advogados, especialista em direito digital e proteção de dados
Podemos dizer que os criminosos estão migrando dos crimes patrimoniais para os cibernéticos? Por quê?
Sim, há uma migração clara de criminosos de crimes patrimoniais para os cibernéticos, impulsionada principalmente pelo alto lucro com baixo risco: fraudes digitais como phishing, ransomware e golpes bancários rendem grandes valores com pouca exposição física, graças ao anonimato da internet, uso de VPNs e criptografia. O fator financeiro é central, mas a facilidade tecnológica e a dificuldade de rastreamento também pesam muito.
Percebemos que há uma dificuldade na investigação policial, uma vez que esse tipo de criminoso pode usar sites hospedados em outros países. O que pode dizer sobre isso?
As investigações de crimes cibernéticos apresentam desafios importantes, mas também oportunidades para avanço e modernização das forças policiais. A atuação internacional, embora complexa, incentiva o fortalecimento de parcerias globais e a criação de acordos mais eficazes. O uso de tecnologias como VPNs, criptomoedas e identidades virtuais exige da polícia maior especialização, estimulando investimentos em capacitação e ferramentas de ponta. O crescimento dos crimes digitais, por sua vez, destaca a necessidade de modernização contínua das estruturas investigativas, o que pode resultar em forças mais preparadas, integradas e eficientes no combate a esse tipo de criminalidade.
Como facilitar as investigações?
O enfrentamento aos crimes cibernéticos exige medidas estruturadas e coordenadas. É imprescindível o investimento contínuo em capacitação técnica e tecnológica, bem como a criação e o fortalecimento de centros especializados, com equipes multidisciplinares e o a ferramentas forenses avançadas. A integração entre os setores público e privado, com o compartilhamento em tempo real de informações entre instituições financeiras, empresas de tecnologia e órgãos de investigação, é fundamental para o rastreamento de recursos ilícitos. No âmbito internacional, a adesão efetiva a convenções, como a de Budapeste, e a participação em operações conjuntas sob coordenação de entidades como Interpol e EC3 (European Cybercrime Centre), são indispensáveis para uma cooperação sistêmica e eficiente no combate a esse tipo de criminalidade.
Estelionato é um crime de baixa pena. Por vezes, criminosos não ficam presos. Quais os gargalos? Legislação fraca?
No Brasil, a punição do estelionato cibernético enfrenta obstáculos significativos, como a limitação da legislação prevista no artigo 171 do Código Penal, cuja pena de 1 a 5 anos frequentemente resulta em medidas alternativas, especialmente em casos considerados de menor gravidade. A complexidade na obtenção de provas técnicas, aliada à escassez de recursos nas esferas policial e judicial, contribui para atrasos processuais e, em muitos casos, para a prescrição dos crimes. Embora a Lei 14.155/2021 tenha representado um avanço, a ausência de tipificações mais específicas para fraudes digitais e a sobrecarga do sistema de Justiça dificultam a aplicação de sanções mais rigorosas, evidenciando a necessidade de legislação mais adequada e de maior estrutura investigativa.
Dados
51% têm renda de até 2 salários mínimos
35% têm renda de entre 2 e 6 salários mínimos
14% têm renda de mais de 6 salários mínimos
Fonte: Instituto de Pesquisa DataSenado
Golpes mais recorrentes
Golpe do perfil falso no WhatsApp
Os criminosos vinculam a fotografia da vítima, normalmente retirada do próprio WhatsApp ou de redes sociais, a um número telefônico. Se ando por ela, eles solicitam dinheiro e/ou outras vantagens para os conhecidos da vítima.
Golpe de investimentos
Os criminosos usam pessoas jurídicas com aparente credibilidade para oferecer investimentos pessoais com ganhos e taxas de juros acima dos praticados no mercado. Eles alegam que atuam no mercado de ações ou que possuem algum produto de grande valia. As vítimas fazem aportes de dinheiro e, com esses valores, os criminosos pagam investimentos daqueles que entraram antes, apresentando uma suposta credibilidade no modelo de negócio. Assim, os primeiros investidores, animados com seus ganhos, acabam trazendo outros que também fazem aportes. Dessa forma, fazem girar o sistema financeiro criado pelos criminosos, até o momento em que eles “quebram” o esquema, desviando milhares de reais dos investidores.
Golpe do motoboy de banco
A vítima recebe uma ligação telefônica supostamente da área de segurança do banco e é questionada sobre uma compra realizada com seu cartão de crédito. Diante da resposta negativa, o interlocutor confirma alguns dados pessoais, informa que o cartão de crédito foi clonado, mas que já está cancelado. Explica que, para comodidade do cliente, um funcionário da agência, devidamente identificado com crachá, irá comparecer à residência da vítima para pegar o cartão de crédito cancelado e também uma declaração de não reconhecimento de compra. Com o cartão, o criminoso realiza saques e diversas compras em nome da vítima.
Informações: Polícia Civil do DF